sexta-feira, 18 de maio de 2012

Verdade e Consenso - Lenio Luiz Streck

Capítulo 8 - Hermenêutica e "abertura" interpretativa : da discricionariedade (positivista) à ponderação (argumentativa). A teoria da argumentação jurídica e a não superação do paradigma da filosofia da consciência. A "abertura" principiológica e o "fechamento" hermenêutico

"Levemos o texto a sério e deixemos que nos diga algo. De como texto é evento. A superação das pretensões objetivistas e subjetivistas. Um novo olhar sobre a relação texto-norma.

Frequentemente a hermenêutica - na matriz aqui (re) trabalhada - tem sido acusada de relativismo , isto é , se não há um fundamento no sentido propugnado pela metafísica , questão que é bem representada pelo Trilema de Münchausen, e se não há uma metodologia que sustenta a verdade dos discursos (problemática ínsita às posturas procedimentais), isso implicaria um "decisionismo claramente irracional" (Velasco Arroyo).

Desse modo, como combinar a pretensão de verdade com o compreender diversamente , pergunta Jean Grondin? A partir de Gadamer , o autor vai dizer que compreendemos diversamente com frequência porque nós mesmos falamos novamente sobre a verdade, quando aplicamos à nossa situação algo verdadeiro (uma afirmação exata, uma crítica etc). Sem dúvida, a cada época e, eventualmente, cada indivíduo o faz à sua maneira e, assim, "diversamente". Mas, continua Grondin, o que uma tentativa de compreensão pretende segue sendo uma verdade, sobre a qual se pode eventualmente discutir. Seria um curto-circuito histórico explicar como relativista a verdade aceita, no caso, de maneira diversa. Na medida em que a hermenêutica o supera, o relativismo nada mais foi/é do que um fantasma, isto é, uma construção, que deve provocar susto, mas que não existe. Porque um relativismo, comumente entendido como a concepção segundo a qual determinada coisa, ou mesmo qualquer coisa, é exatamente como qualquer outra, de fato nunca foi defendido seriamente. Em todo caso, não pela hermenêutica, que afirma, certamente, que as experiências que nós fazemos com a verdade estão inseridas em nossa situação, e isso significa : na conversação interior que nós realizamos constantemente conosco mesmo e com os outros.

Jamais existiu um relativismo para a hermenêutica. São antes os adversários da hermenêutica que conjuram o fantasma do relativismo, porque suspeitam existir na hermenêutica uma concepção de verdade, que não corresponde às suas expectativas fundamentalistas. Dessa forma, na discussão filosófica contemporânea, o relativismo funciona como um espantalho ou um fantasma assustador, em favor de posições fundamentalistas, que gostariam de abstrair da conversação interior da alma. Quem fala do relativismo pressupõe que poderia existir para os humanos uma verdade sem o horizonte dessa conversação, isto é, uma verdade absoluta, ou desligada de nossos questionamentos. Como se alcança uma verdade absoluta e não mais discutível ? Isso nunca foi mostrado de forma satisfatória. No máximo "ex negativo" : essa verdade deveria ser não finita, não temporal, incondicional, insubstituível etc. Nessas caracterizações, chama a atenção a insistente negação da finitude. Com razão, pode-se reconhecer nessa negação o movimento básico da metafísica, que é exatamente a superação da temporalidade."

Verdade e Consenso (Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas) - Lenio Luiz Streck. Ed. Saraiva. 4. Ed. São Paulo : 2011. (p.213-215)


Lenio Luiz Streck (Agudo, 21 de novembro de 1955) é um jurista brasileiro.
Jurista de formação, graduou-se em Direito pela UNISC em 1980. Fez mestrado em Direito do Estado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com conclusão em 1988. Nesta mesma universidade doutorou-se em 1995 e, logo em seguida, em 1996, ajudou a fundar o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos-RS), figurando até a data atual como coordenador das linhas de pesquisa do programa. Em 2001, concluiu o pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. É atualmente procurador da Justiça no Estado do Rio Grande do Sul.

Desde 2003 é Membro Catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), sendo também Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Participa como professor convidado de algumas instituições, como a Universidade Estácio de Sá (UNESA-RJ), a Facultad de Ciencias Jurídicas da Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá e a Universidade de Coimbra, em Portugal. Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público. Na Unisinos, é líder do grupo de pesquisa "Hermenêutica Jurídica", vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Técnológico (CNPq/BR), e também coordenador do DASEIN - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Streck é frequentemente convidado para proferir palestras pelo Brasil e no exterior, como nas universidades do Porto e de Coimbra, ambas em Portugal, e na Fondazione Basso, na Itália. Na Università degli Studi Roma Tre, Itália, para os alunos de doutorado, ministrou o Corso di Derecho Ibero-Americano, em 2009. Participou do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional, realizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), ao lado do Prof. Dr. Luigi Ferrajoli.

Streck é autor ou co-autor de dezenas de livros que versam sobre hermenêutica jurídica, direito constitucional, direito processual e direito penal. Sua última obra, O que é isto - decido conforme minha consciência?, publicada pela Livraria do Advogado, é o primeiro volume de uma coleção lançada pelo autor (Coleção "O que é isto?"), sendo considerada um libelo contra as diversas formas de decisionismo judicial.

Vários de seus livros estão disponíveis na prestigiosa Library of Congress dos Estados Unidos. Ele também apresenta semanalmente o programa Direito & Literatura, levado ao ar pela TV Justiça e pela TVE RS.

Aula Magna no STF: "Hermenêutica e Decisão Jurídica" O programa Aula Magna foi ao ar no dia 24 de junho de 2010, reprisado na segunda-feira, às 9h; e na sexta-feira, às 19h; na TV Justiça. Confira a íntegra desta palestra no programa veiculado pela TV Justiça - Canal Oficial do STF no You tube.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A arte de escrever -- Arthur Schopenhauer

"A maior parte de todo o saber humano , em cada um dos seus gêneros , existe apenas no papel, nos livros, nessa memória de papel da humanidade. Apenas uma pequena parte está realmente viva, a cada momento dado, em algumas cabeças. Trata-se de uma consequência sobretudo da brevidade e da incerteza da vida, mas também da indolência e da busca de prazer por parte dos homens. Cada geração que passa rapidamente alcança, de todo o saber humano, somente aquilo de que ela precisa.

Em seguida desaparece. A maioria dos eruditos é muito superficial. Segue-se, cheia de esperanças, uma nova geração que não sabe nada e tem de aprender tudo desde o início, de novo ela apanha aquilo que consegue ou aquilo de que pode precisar em sua curta viagem, depois desaparece igualmente. Assim, que desgraça seria para o saber humano se não houvesse escrita e imprensa ! As bibliotecas são a única memória permanente e segura da espécie humana, cujos membros particulares só possuem uma memória muito limitada e imperfeita. É por isso que a maioria dos eruditos resiste tanto a deixar que seus conhecimentos sejam examinados, tendo o mesmo comportamento dos comerciantes em relação a seus registros de vendas.

O saber humano se espalha para todos os lados, a perder de vista, de modo que nenhum indivíduo pode saber sequer a milésima parte daquilo que é digno de ser sabido.
Sendo assim, as ciências adquiriram uma tal amplitude em suas dimensões, que alguém com a pretensão de realizar algum empreendimento científico deve se dedicar apenas a um campo muito específico, sem dar importância a todo o resto. Nesse caso, ele de fato se encontrará acima do vulgo em seu campo, no entanto será como qualquer pessoa em todos os outros. Além disso, torna-se cada vez mais comum hoje em dia o descuido com as línguas antigas, cujo aprendizado parcial de nada serve, contribuindo para a decadência geral da cultura humana. Com isso veremos eruditos que, fora de seu campo específico são verdadeiras bestas.

Em geral , um erudito tão exclusivo de uma área é análogo ao operário que, ao longo de sua vida, não faz nada além de mover determinada alavanca, ou gancho, ou manivela, em determinado instrumento ou máquina, de modo a conquistar um inacreditável virtuosismo nessa atividade. Também é possível comparar o especialista com um homem que mora em sua casa própria, mas nunca sai dela. Na casa, ele conhece tudo com exatidão, cada degrau, cada canto e cada viga, como,  por exemplo, o Quasímodo de Victor Hugo conhece a catedral de Notre-Dame, mas fora desse lugar tudo lhe é estranho e desconhecido.

Em contrapartida, a verdadeira formação para a humanidade exige universalidade e uma visão geral; portanto, para um erudito no sentido mais elevado, algo como um conhecimento enciclopédico da história. Mas quem quer se tornar um filósofo de verdade precisa reunir em sua cabeça as extremidades mais afastadas da vontade humana. Pois onde mais elas poderiam ser reunidas ?

Espíritos de primeira categoria nunca se tornarão especialistas eruditos. Para eles, como tais, a totalidade da existência é que se impõe como problema, e é sobre ela que cada um deles comunicará à humanidade novas soluções, de uma forma ou de outra. Pois só pode merecer o nome de gênio alguém que assume como o tema de suas realizações a totalidade, aquilo que é grandioso, as coisas essenciais gerais, e não alguém que dedica os esforços de sua vida a esclarecer qualquer relação específica de objetos entre si."

A arte de escrever - Arthur Schopenhauer (1788-1860)
págs. 29-31. Ed. L&PM Pocket.2010

Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de Fevereiro 1788 — Frankfurt, 21 de Setembro 1860) foi um filósofo alemão do século XIX.

Seu pensamento é caracterizado por não se encaixar em nenhum dos grandes sistemas de sua época. Sua obra principal é O mundo como vontade e representação (1819), embora o seu livro Parerga e Paralipomena (1851) seja o mais conhecido. Schopenhauer foi o filósofo que introduziu o budismo e o pensamento indiano na metafísica alemã. Ficou vulgarmente conhecido por seu pessimismo e entendia o budismo (e a essência da mensagem cristã, bem como o essencial da maior parte das culturas religiosas de todos os povos em todos os tempos) como uma confirmação dessa visão realista-pessimista. Schopenhauer também combateu fortemente a filosofia hegeliana e influenciou fortemente o pensamento de Eduard von Hartmann e Friedrich Nietzsche.